ESTADO DE ESPÍRITO
Se a fé move montanhas, para José Marques ela retirou um nódulo do tamanho de uma uva alojado no cérebro. O técnico de refrigeração do Sul do Estado chegou bem perto da mesa de cirurgia em setembro do ano passado. Três tomografias revelaram e comprovaram uma mancha parecida com a de um tumor. Na quarta vez que repetiu o exame, ela havia sumido. Na avaliação do médico, poderia ser um acúmulo de secreção causado por uma sinusite grave, mas o paciente de 50 anos tem o próprio diagnóstico: trata-se de um milagre de Albertina Berkenbrock. Para agradecer a graça, nesta Sexta-feira Santa, ele pedalou sob chuva 180 quilômetros de Turvo a Imaruí, no Sul do Estado, com destino ao santuário da beata catarinense. No ano passado, ele fez o percurso acompanhado de uma pessoa. Desta vez, são quase 60.
Como a peregrinação de José, os documentos para comprovar os milagres de Albertina em busca da canonização pelo Vaticano têm aumentado e dão dimensão do maior símbolo da religiosidade: a fé. Se o processo for aceito, a mártir será a segunda santa catarinense – a primeira é madre Paulina –, o que comprova a força das religiões, principalmente do cristianismo, no Estado.
Os dados do IBGE confirmam esse aspecto. De cada 100 pessoas que vivem em Santa Catarina, 97 dizem crer em alguma religião. O Censo 2010 – o mais recente realizado no país – ainda coloca o Estado como o maior em número de fiéis do Brasil considerando o número total da população. Apenas 3% dos entrevistados responderam que não têm nenhuma crença. Mas o que torna os catarinenses tão devotos?
Segundo especialistas, há duas explicações para o fenômeno: a primeira seria a colonização europeia, que influenciou a religiosidade da população, e a outra é a formação de pequenas cidades – 30% dos municípios de SC têm menos de 5 mil habitantes – o que favorece a aproximação da comunidade. Por um motivo ou outro, o reflexo dessa devoção se traduz em mais de 120 festas religiosas e santuários espalhados pelo Estado. Despontam em visitações, santuários como o da Santa Paulina, na Grande Florianópolis, e eventos como o Congresso de Gideões, que reuniu cerca de 150 mil pessoas em Camboriú no ano passado.
Do ponto de vista do arcebispo católico Dom Wilson Tadeu Jönck, a fé influencia e organiza a vida social, o trabalho e o comportamento. Essa integração de elementos é característica dos imigrantes que vieram para o Estado e se uniram pela religiosidade, estabelecendo bases comunitárias em relação com a igreja.
– Na minha geração e na de meus pais era bem forte a questão religiosa. Ao lado das igrejas, se construíram escolas, clubes para as pessoas confraternizarem e outras instituições. Esse espírito religioso sempre foi fundamental – diz o bispo.
Por conta disso, todas as relações sociais que se estabeleciam passavam pela igreja, segundo o arcebispo catarinense. A economia e a política estavam vinculadas à moral religiosa no período da imigração e no começo do século 20.
O pastor da Assembleia de Deus Marcondes Rocha de Oliveira vai mais longe e cita a dominação católica na época do colonialismo, o que, segundo ele, teria imposto a religiosidade aos brasileiros e, consequentemente, dos catarinenses.
– Graças a Deus que isso caiu, porque não se pode impor ao povo uma religião – diz o pastor de uma das segunda maiores igrejas pentecostais do país.
O coordenador do curso de Teologia da faculdade Refidim, Valdinei Ramos Gandra, reforça essa ideia destacando que os eventos religiosos mantêm um vínculo histórico-religioso das populações que inicialmente colonizaram Santa Catarina.
– As festas religiosas, tanto do catolicismo como do luteranismo, são tentativas de assegurar um mínimo de identidade cultural com vistas ao passado de imigração europeia. Até mesmo as que não são exclusivamente religiosas, como as festas de outubro (Oktoberfest), são atravessadas por uma imaterialidade religiosa (teológica).
MÚLTIPLAS CRENÇAS
Diferentemente do que predominou do século 19 ao começo do século 20, agora Santa Catarina é palco de uma diversidade de crenças. Enquanto cai o número de fiéis católicos, embora ainda representem 70% da população catarinense, o número de pessoas que se auto-afirmam participantes de outras religiões como Espiritismo e Umbanda dobra. O pesquisador em Teologia Filipe Ferrari afirma que essa é uma representação de sincretismo religioso.
– A pessoa vai à missa católica no sábado, ao culto pentecostal no domingo, ao centro espírita na quarta e ao terreiro nas sextas. E isso é perfeitamente normal em diversos meios sociais.
A diferença é que, até pouco tempo, as pessoas temiam em confessar que circulavam por diferentes crenças em função de diversos motivos: o principal deles é o preconceito sofrido por algumas delas, como as de matriz africana.
– Quando alguém era questionado sobre a religião respondia que era “católico” ou “cristão”. Mas agora, com mais informação e a religiosidade sendo discutida abertamente, apesar de ainda ter muito a avançar nesse sentido, as pessoas estão se sentindo mais confortáveis para admitir suas práticas religiosas. Por isso, é difícil dizer se esses números revelam uma mudança religiosa de fato ou menos medo de admitir que se frequenta um terreiro ou uma casa espírita – diz Filipe.
PROCISSÃO DE FIÉIS
A mãe de Alex dos Santos não sabia mais o que fazer. Volta e meia, o filho acabava no hospital com bronquite asmática. Em uma das internações, o médico foi direto: o pulmão do menino de oito anos estava bem debilitado e ele poderia não resistir às próximas crises.
– Aí fui à Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) com minha vó e ouvi o pastor dizer que nada era impossível, desde que eu tivesse fé – lembra Alex.
As palavras fizeram o garoto se converter. De família católica, ele foi rebatizado na Iurd e até hoje, aos 30 anos, frequenta os cultos quatro vezes por semana.
– Nunca mais tive crise nenhuma – garante Alex, que atualmente é operador de caixa de um supermercado em Florianópolis.
Como ele, outras pessoas encontram conforto e esperança nas crenças pentecostais. O avanço desses grupos vem acirrando a batalha por fiéis no Estado. Muitas lideranças religiosas se transformaram em organizações com espaços na mídia e afiadas técnicas de marketing – uma ação articulada para chamar a atenção dos futuros devotos.
– Faz parte da crença das igrejas pentecostais conquistar mais e mais fiéis. Essa captação seria parte do mandamento divino e, por isso, uma missão a ser cumprida a todo custo – destaca o cientista social da Furb Josué de Souza.
Outras religiões ligaram o sinal de alerta para o que está acontecendo e já ensaiam mudanças para trazer de volta os participantes que tomaram outro rumo. Mas isso não será fácil dentro de um cenário competitivo, de igrejas que oferecem desde a salvação até a melhoria radical na vida terrena.
A homogeneidade da Igreja Católica, que chegou a ter 95% de brasileiros, já se viu questionada pela chegada dos imigrantes alemães e do luteranismo em Santa Catarina. Mas foi apenas no século 20 que o confronto em busca de membros se tornou mais notório. O pastor Marcondes Rocha de Oliveira destaca que a Assembleia de Deus chegou ao Estado nos anos 1930, em uma sociedade dominada pelo catolicismo. Desde aquela época já se esperava que a cruzada seria difícil.
– O que leva as pessoas a deixarem uma religião? Essas pessoas estão convencidas que estavam sendo doutrinadas de forma errada – argumenta.
Liderança da religião que cresce menos no Estado, dom Wilson Tadeu Jönck admite que é perceptível a mudança de cenário. Segundo ele, há alguns anos a hegemonia católica gerava desconforto e grupos políticos passaram a se formar e querer pleitear esse espaço. Para reverter o quadro, que acelera a cada ano, o jeito é apostar na renovação da fé. O ato de José Marques, o técnico em refrigeração que pagará a promessa a Albertina Berkenbrock, a beatificação de santos, as romarias e os santuários reforçam as bases da Igreja Católica.
– Há uma peregrinação do catolicismo, que podemos considerar uma religião doadora de fiéis, a outras instituições religiosas, dentre elas as igrejas evangélicas em suas múltiplas vertentes, bem como as outras religiões, que podemos chamar de não-hegemônicas, como os espiritismos e as religiões de matriz afro. Mas me parece eminente que, com o papa Francisco, o número de fiéis no catolicismo se renove – acredita o presidente da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), o historiador Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho.
Observando de longe essa disputa, mesmo fazendo parte da religião que mais cresce em Santa Catarina, Edison Vitor Facciani, presidente da 14a União Regional Espírita, diz que Santa Catarina é um Estado bastante dinâmico, com pessoas que transitam em várias religiões.
Isso explica o porquê do espiritismo passar de 44 mil para 99 mil adeptos de 2000 a 2010, segundo o IBGE. Para Edison, esse crescimento é perceptível e pode ser ainda maior:
– Várias casas têm que abrir outros dias para conseguir acomodar todos. Todo o nosso trabalho é voluntário, por isso os centros não funcionam todos os dias.
NOVOS MOVIMENTOS
Marketing bem estruturado, última moda em corte de cabelo e roupas. A busca por fiéis tem feito igrejas apostarem em novos mecanismos para atrair público. Enquanto as tradicionais creem na tradição e na herança deixada de pai para filho, hoje é preciso algo bem bolado para atrair jovens, inclusive aceitando todo o tipo de gente – de surfistas a universitários. A Bola de Neve Church, fundada em 1999, em São Paulo, e a Onda Dura, uma corrente dentro da Comunidade Cristã Siloé, que surgiu em 2007, em Joinville, estão entre elas.
O historiador Eduardo Meinberg afirma que esses novos elementos servem para revestir e dar mais brilho a bases bem conservadoras. Tanto que discussões como sexualidade e gênero têm passado distante das novas igrejas.
– Assim, parodiando o verso bíblico, podemos entender serem “vinho velho em odres novos”, ou seja, o conteúdo é tradicional e conservador, ainda que se revistam de aparente inovação. Há um discurso aparentemente derretido, flexível, polissêmico, mas que é, em si, bastante congelado, conservado e conservador – diz Meinberg.
Pode-se dizer, segundo coordenador do curso de Teologia da faculdade Redifim, Valdinei Ramos Gandra, que a sexualidade continua sendo um tabu nessas igrejas que se dizem mais descoladas, inovadoras, destinadas aos jovens. Para ele, os avanços tecnológicos e estéticos são aceitos de braços abertos, mas os pontos sensíveis socialmente, como a vida sexual dos fiéis, acabam caindo num senso comum religioso já praticado pelas igrejas tradicionais.
Para o arcebispo Dom Wilson, na igreja católica a busca por jovens ocorre pelo contato social. Mas ele admite que é um grupo difícil de conquistar porque a religião toca na autonomia e é preciso paciência.
– Quando ela (juventude) está angustiada, ela busca (apoio) no ambiente religioso. Aí se conversa, se orienta.
SEMEAR TOLERÂNCIA PARA COLHER IGUALDADE
Maria Alice Jesus Lima tinha uma casa de Umbanda em Florianópolis até o ano passado, que abria duas vezes por mês e aos sábados. Mas depois de muitas denúncias contra o barulho, multas e dores de cabeça resolveu fechar as portas.
– Uma pessoa reclamava que tinha som alto, mesmo em horários mais cedo.
A realidade de Maria Alice é bem parecida com a de outras casas em Santa Catarina e mostra que, apesar da busca por respeito, Santa Catarina ainda abriga intolerância religiosa. Não há dados estatísticos precisos, mas, segundo a presidente da Associação Terreira Beneficente e Terreiro de Umbanda do Reino de Iemanjá, a mãe Kátia Regina d’Omulú, foram fechadas mais de oitos casas nos últimos anos. O motivo, na maioria das vezes, é o som alto.
– Utilizam o código de meio ambiente. Tivemos alguns casos que houve fanatismo por parte de outras pessoas que entraram nas casas e quebraram santos.
De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos, o Disque 100 recebeu neste ano uma denúncia de intolerância religiosa. No ano passado, foram três.
Para o pesquisador e membro do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa, Elcio Cecchetti, o aumento nas denúncias de intolerância revela a urgência de uma política pública que solucione o problema. Segundo ele, muitas agressões não chegam ao Disque 100.
– A Polícia Civil geralmente não enquadra as denúncias de invasão de terreiros como casos de violência religiosa. Tratam como invasão de propriedade ou um caso corriqueiro, o que na verdade não é.
Esse discurso de ódio com outras religiões pode ser explicado pela falta de educação e preparação da sociedade para lidar com pensamentos diferentes, segundo Elcio:
– As pessoas não são capazes de lidar com manifestações religiosas distintas. Esse outro, esse que não se parece com a religião praticada comumente, é visto como uma ameaça. Essa discriminação pode ser vista nas ruas e nas opiniões cheias de ódio nas redes sociais.
AMAR AO PRÓXIMO COMO A SI MESMO
Se até poucos anos atrás, eram os evangélicos que sofriam constrangimentos por suas crenças e por adotarem costumes, como o uso de saias por mulheres, o crescimento exponencial dessas igrejas fez com que o preconceito fosse combatido. Mas as religiões de matriz africana, as espíritas e até pessoas que se dizem sem religião, ateias ou agnósticas estão longe de terem seus ideiais de fé respeitados.
Babalorixá há pelos menos 25 anos, o bibliotecário Luiz Carlos Peres destaca que a Umbanda ainda sofre forte preconceito e aversão da sociedade, sendo denominada como uma religião só de negros, pobres e marginais. Para as discussões nos últimos anos têm trazido melhorias, as pessoas têm se conscientizado mais das diferenças, mas ainda está longe do ideal.
Os casos têm chegado até instituições de combate ao preconceito, mas a situação não deve ter um desfecho tão cedo. O responsável pelo departamento jurídico do SOS Racismo da Universidade Estácio de Sá em Santa Catarina, Luciano Góes, tenta ajudar como pode. Ao receber essas denúncias de fechamentos de terreiros por órgãos de fiscalização, entra com medidas administrativas com ajuda da equipe jurídica. Quando não há solução, a única maneira de resolver é acionando a Justiça:
– A violência simbólica é muito forte.
Os ataques não se restringem ao Candomblé ou à Umbanda. O espiritismo também aumentou fortemente em Santa Catarina na última década, mas ainda é alvo de extremistas. Mesmo com a mudança no cenário, com mais gente se sentindo confortável em admitir que é espírita, os ataques às igrejas continuam intensos, segundo o presidente da 14a União Regional Espírita, Edison Vitor Facciani.
A solução do problema para algumas instituições é investir em educação. O ensino religioso amplo, que contemple a variedade de crenças existentes, seria um caminho para a compreensão da diferença, para o respeito, segundo o coordenador do Fórum Nacional de Permanência do Ensino Religioso, Leonel Piovezana.
Ele aponta como horizonte a formação de bons professores, a oferta de cursos superiores e profissionais que queiram dar aulas.
– Somente com educação a sociedade seria capaz de compreender as diferenças.
Piovezana faz parte de comitê do Ministério da Educação que discute o tema para a Base Nacional Comum Curricular.
– Acreditamos que se você conhece o outro, você o entende.
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