Educadores/as
Confiram abaixo atividade de aprendizagem desenvolvida nas aulas de Ensino Religioso!
Agradecemos e parabenizamos o professor Claudiomiro da Silva pelo excelente trabalho que vem realizando com seus estudantes, promovendo a reflexão e aprendizagem.
Gostaria de um remédio...
Sempre gostei de trabalhar com adultos
até porque a reflexão favorece em muito e flui com mais facilidade. Claro que
isso não é uma regra, dependendo do grupo que se trabalha. Aprecio e muito o
conhecimento por duas razões: quando a propriedade do saber que a
pessoa apresenta é tão seu e tão genuíno, quanto as marcas do corpo,
seja pelo sofrimento, pelo cansaço ou pelos duros calos da vida. Onde a pessoa
fala com propriedade de alma e coração. Nas palavras erradas, na
simples construção das ideias, mas com uma profundidade que comove e faz-nos
parar para refletir. A outra é aquela embasada na aplicação ao estudo, leitura
e pesquisa com enraizamentos teóricos e históricos que vão muito além do que
acreditávamos ser possível, mas com uma roupagem de humildade e muita segurança
sem fazer perceber que todo aquele saber fosse sua propriedade, mas fruto do
seu esforço e de todos e tudo que se abriu como possibilidade para alcançar tal
estágio.
Quando sou convidado para trabalhar com
crianças ou mesmo adolescentes, sinto essa dificuldade. Muito longe passo das
duas experiências dos saberes acima citadas e como gostaria de ser a síntese
das duas experiências sem querer ser pretensioso demais. Eu só queria saber
mais. E nesse propósito de saber mais, resolvi deixar que meus alunos me
ensinassem (por incrível que pareça foram crianças e adolescentes) sobre
a vida, sobre os sonhos, sobre a família. Sim, sobre a família de cuja
impressão que tive é que no mínimo tenho que tomar dois cuidados ao falar ou
fazer qualquer juízo de valores, comportamentos ou níveis de aprendizagem
quando estiver trabalhando com as crianças e adolescentes e porque não dizer,
com todos. Por isso parto de uma premissa bem simples, o que já refleti em
outro texto: se não sabe como funciona, não mexa. Digo
mais, quando estou no meio de um universo de possibilidades e de relações tenho
que tomar todo o cuidado com o que ensino, como ensina ou se é que se ensina,
já que neste texto estou refletindo sobre a recíproca inversa. Ou seja, qual o
signo, qual o sinal que imprimo na vida dessa pessoa, desse ser humano. Imagine
se um médico fizesse uma cirurgia e deixasse por descuido ou mesmo negligencia,
por exemplo, uma gase dentro da pessoa. As vozes mais rebeladas e moralistas
diriam sobre processo, uma surra, coisas do gênero ou piores. Então como
ficaria a situação de quem imprime indelevelmente ou estupidamente sinais, ou
objetos não materiais, mas que se materializarão em dor e morte para a vida de
uma criança ou qualquer outra pessoa, bem lá no fundo do seu ser. O que
mereceriam?
Resolvi então, mudar minha aula e
deixar os alunos falarem. Trabalhei músicas com o violão, textos, dinâmicas,
brincadeiras, filmes e outros etceteras e pouco resultado obtive. Resolvi
deixar todo meu material pedagógico da bolsa em casa e a enchi de
quinquilharias. Eram bonecas, bichinhos, prego, martelo, corda, corrente, cacos
de cerâmicas, pilhas, caixas de remédios (vazias), e se você quiser imaginar
mais um monte de outras coisas e por na bolsa, está valendo. Mudei a
configuração da sala e usei música instrumental para fazer um fundo e ir
acalmando a agitação e o “fervo” da moçada. Era sem pressa, apesar de que
quarenta e cinco minutos é um tempo muito pequeno e quando a coisa fica boa tem
que parar. Mas não paramos, estamos continuando pelas aulas vida afora. Tão
logo terminei a explicação do objetivo da dinâmica, com sucesso total de fundo
com a música, o que fê-los aquietar-se profundamente, e que estranhei e me
maravilhei. Pedi que ao contemplar os objetos, os relacionassem com sua vida de
família, do cotidiano, já que estávamos trabalhando com o projeto a um bom
tempo. Tão logo encerrei minha explicação e pedi para que não tivessem pressa,
um menino se adiantou e perguntou se poderia começar. A vontade, disse. Veio
até o centro da sala onde os objetos estavam dispostos no chão em uma espécie
de grande círculo, tomou uma caixa de remédio e um caco de cerâmica e disse: Gostaria
de encontrar... começou a chorar, sentou-se. Gostaria de encontrar um
remédio para consertar os cacos que minha família e minha vida virou.
Falava isso porque a mãe estava com câncer e o pai estava com muitas
dificuldades pessoais e relacionais. Isso desencadeou uma choradeira na grande
maioria. E até os mais agitados ficaram incomodados com a situação. Logo em
seguida uma menina pegou uma corda na mão e segurou com muita força e disse: professor
eu não aguento mais, estou me sentindo enforcada. O outro com a corrente: estou
me sentindo preso. E o ambiente começou a ficar carregado de uma
comoção generalizada. A menina, pega um patinho e uma bonequinha e diz não
suportar a comparação que os pais faziam dela com a irmã mais nova. Tudo é para
ela e pareço que não existo. Outra pega o martelo e diz que gostaria de falar
para o pai que parasse de trabalhar tanto e desse mais atenção para a família.
E incrivelmente o choro foi de soluçar e eu estava começando a ficar
preocupado. Não tinha objetivo nenhum de fazer ninguém chorar como se dizem em
alguns desses encontros por aí: foi bom porque o pessoal se “debulhou”
chorando. Fui deixando acontecer e percebendo as diversas reações. A emoção de
meninos e meninas e a frieza de alguns. Resumindo, quase encerrando nosso tempo
de aula, disse: não tenho outra coisa a fazer a não ser chorar com vocês. Foi
bonito, puro, original.
A questão que me vem a mente agora é
esta: depois desse despertar maravilhoso, que foi diferente de turma para
turma, o que faremos com o sofrimento, a dor, a dificuldade e a alma dessas
crianças já tão cedo dilaceradas pela dor, pela violência e vítimas da busca
momentânea de felicidade pessoal de alguns pais e mães que acabam condenando a
felicidade integral de seus filhos? O professor não está na condição de
resolver problemas de ordem emocional, pessoal, familiar ou qualquer que seja.
Por isso é que deixei meu conteúdo programado do bimestre das aulas de Ensino
Religioso, para poder penetrar na “alma” desses pequenos passageiros da vida
que já sofrem com as turbulências desde muito cedo e que muitas vezes não tem a
quem recorrer. Não posso fazer da sala de aula um divã, mas posso fazer desses
pequenos espaços de cuja habilidade pedagógica me falta um pouco, um momento
tão único e exclusivo a ponto de que o momento de partilha liberou espaço para
outros saberes em que esse drama existencial ocupava espaço demais por
simplesmente não partilharem ou não lhe darem acesso. Não quero dizer que tenho
que converter minha aula nessa espécie de experiência ou laboratório de emoções
e desafetos gratuitos. Quero dizer que a inusitada experiência me abriu campo
em que conquistei os alunos para fazer com eles “reflexão de gente grande”.
Simplesmente por terem o espaço deles garantido e respeitado, ganhei eles, seus
corações e o meu espaço de reflexão livre e respeitado.
Nosso mundo de relações ficou bem mais
estreito e próximo e mesmo para os mais agitados e inquietos, e que não
conseguiram partilhar nada. Ao que me ficou explícito é de que mora dentro de
cada um, ou de alguns, uma dor profunda e aquele sentimento de que gostariam de
ter falado, mas tem medo, vergonha ou qualquer sentimento do tipo, o que
vão pensar de mim. Sempre me veem como o maioral e agora fracassei. Tememos
nossas fraquezas e as escondemos por trás de mil desculpas do tipo “não
é nada”, “tem nada não”, “dexa quieto”... se pudéssemos fazer uma viajem a
começar da concepção, empilharíamos histórias e mais histórias que nos
custariam dias para serem ouvidas e aqui todos nós gostaríamos de um remédio
para consertar os cacos que também nossa vida virou por trabalharmos demais não
só como realização do que busco alcançar, mas por não suportar a comparação com
quem tem e é diferente. Como diz Kierkegaard: a maior tragédia do ser
humano é a comparação. Não suportamos, não aceitamos, porem vivemos a vida
em face desse universo pesaroso de conquistas vãs onde nos falta o grande
remédio. É, realmente, gostaria de um remédio. Não vem em uma caixa mágica que
concerta os cacos. Talvez eu encontre em alguém que simplesmente queira me
ouvir. Sentir. E se não há o que fazer, porque ninguém quer ou mesmo se a gente
pode fazer algo pelo outro que a pessoa não esteja disposta a fazer por si,
tenho que respeitar. E se o choro for inevitável, então chorarei junto contigo.
Completarei e contemplarei a sua dor, empresto meus ouvidos e compartilho as
minhas lágrimas, não como quem é fraco, mas como quem precisa de um remédio
salutar para curar a alma tão dilacerada mesmo que para o mundo não há
importância nenhuma e não fará nenhuma diferença. Mas o mundo dessa pessoa se
converterá em algo um pouco mais suave e prazeroso.
Um remédio simples, sem contra
indicação, tão escasso e tão raro entre nós. Gente pagando, e muito caro para
sorrir, ser feliz, ter amigos, querer viver, ser amado. Se ouvir é eficaz,
redentor e capaz de devolver a dignidade as pessoas, que eu empreste os olhos,
ouvidos, coração, mente e todo o meu ser para que eu vá me diluindo pela
realização e felicidade do outro. E o que é mais interessante que descobrimos
no final que a pessoa mais feliz ainda sou eu. Mesmo que haja quem diga que
isso é pensar e querer muito além do que é possível. É porque ainda não nos
desafiamos para tal por saber que o grande milagre só acontece de duas formas:
por quem faz a provocação e principalmente por quem deseja profundamente que
ele aconteça. É o milagre que nasce de dentro, do querer mais profundo e
sincero da pessoa que diante do outro que a ouve, compreende e chora junto,
derrama sua alma com toda solicitude e humildade. Poxa, isso já é um milagre
sem que aconteça feito maravilhoso, porque já é uma maravilha. Logo, o remédio
que eu gostaria está dentro de mim, de você, mas preciso do outro para me
ajudar ver onde não posso. Onde guardei dentro de mim que se perde com tanta
inutilidade e precisa de alguém que o diga que está ao alcance de sua mão, tão
pronto para ser tocado, encontrado, curado.
Fonte: Claudiomiro da Silva
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